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sábado, 1 de abril de 2017

“LIBERTÉ, ÉGALITÉ E VOCÊ”



Enfim, ninguém mais precisará pegar em armas para invadir Versalhes

  
Nem tudo na vida desce melhor em francês. Às vezes a língua faz de tudo para facilitar as coisas. Usa, por exemplo, a mesma palavra para falar de residências aristocráticas, sedes de governo, hospitais ou hospedarias. Mas no mês passado a notícia de que em Versalhes o velho Hôtel du Grand Contrôle está virando o novo Hôtel de l’Orangerie só faltou entalar na garganta de Jean-Jacques Aillagon, que administra o palácio, o museu e o parque desertado pela realeza em outubro de 1789.

“É uma iniciativa pioneira”, declarou Aillagon na entrevista coletiva que anunciou a locação do prédio histórico à Ivy International, uma empresa belga. Pioneira, mas não revolucionária. Espanha e Portugal, desde a década de 40, alugam quartos em conventos, castelos e outras relíquias de seu patrimônio público, confiando sem maiores cerimônias à iniciativa privada a gestão dos paradores e pousadas oficiais.

E agora a França entra na roda com um vasto acervo de tesouros, que inclui as muralhas medievais de Carcassonne, ao norte dos Pireneus, e o castelo de Saint-Cloud, nas margens do Sena. Só não dá para sonhar com uma noite na Bastilha, em Paris, porque tão logo o povo tomou a prisão, o especulador imobiliário Pierre-François Palloy, “o Patriota”, arrancou do comitê revolucionário uma licença para demoli-la.

A conversão do Hôtel du Grand Contrôle em Hôtel de l’Orangerie é só o primeiro passo de uma revolução na hotelaria francesa. Mas nem isso poupou Aillagon da ferroada do Libération. Os franceses já sabiam há muito tempo que o administrador de Versalhes era “um tantinho provocador, mas não a tal ponto”, comentou no dia seguinte o jornal fundado pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Referia-se à estreia de Aillagon na vida pública, oito anos atrás, comunicando ao país, como ministro da Cultura e da Comunicação, que na vida privada continuaria homossexual.

No caso do Grand Contrôle, o administrador bem que tentou ficar na defensiva. Alegou que o edifício construído em 1684 para um duque e tomado em 1720 de uma agiota holandesa estava em petição de miséria. Literalmente, “desbeiçado”, depois de uma longa ocupação pelo Ministério da Guerra, que o usou desde o século XIX como repartição militar sem jamais consertar o que o tempo ia limando.

Seu saguão está interditado porque o teto caiu sobre a escadaria. A capela, em ruínas. As paredes, nuas e vergadas. As vigas, bichadas. O terraço, tão cheio de infiltrações que a chuva cascateia pelos andares abaixo. Mas o prédio é tombado como monumento nacional. Mesmo sem integrar, no sentido estrito, o Palácio de Versalhes, na prática tem passagem direta para seus pavilhões e acolheu no passado inquilinos ilustres, como o ministro das Finanças Anne Robert Jacques Turgot.

Turgot tentou, pela reforma econômica, livrar a França da ruína e, por tabela, Luís XVI da rota de colisão com o fio da guilhotina. Mas não emplacou dois anos no posto de tesoureiro-mor daquela corte perdulária. O cargo Grand Contrôle, apesar do nome presunçoso, passou à posteridade como símbolo do grande descontrole financeiro que roeu o Antigo Regime. E o palácio de tijolos vermelhos, com 1 700 metros quadrados de área semidestruída e decoração interna reduzida a duas chaminés, nunca mais voltou a ser a sombra do que era.

Terá agora que melhorar muito para ser o hotel “de charme” que prometem seus arrendatários. Até reabrir as portas, em janeiro do ano que vem, passará por uma reforma em regra. A obra, orçada em qualquer coisa entre 5,5 e 7 milhões de euros (ou, por alto, de 12 a 16 milhões de reais), custaria mais do que o governo francês está disposto a desembolsar.

Tratava-se, portanto, de “salvá-lo”, disse Aillagon. E salvá-lo de maneira “distinta, porque ele está realmente plantado no cenário nobre, mesmo se não está no jardim”. O forte do hotel, mesmo antes da reforma, são as janelas de seus 23 apartamentos, debruçadas sobre os laranjais de Luís XIV, que lhe deram o nome de “l’Orangerie”.

Ele dá vista também para os espelhos d’água do lago ornamental suíço e, ao fundo, os bosques das antigas reservas de caça onde Luís XVI, perseguido desde a juventude pela má fama de casto e misógino, esmerava-se em provar à corte que dava no couro de javalis e cervos. Tudo isso a menos de 20 quilômetros de Paris. É um privilégio real, embora não chegue a ser exclusivo. Do outro lado do parque, o Trianon Palace, da cadeia Waldorf Astoria, oferece mais ou menos o mesmo panorama, só que virado pelo avesso.

Inigualável mesmo, no Hôtel de l’Orangerie, é a vizinhança. Não exatamente a dos turistas que fazem fila na porta do palácio, às vezes em multidões tão compactas que dariam para começar a Revolução Francesa outra vez. Luís XVI fugiu de menos gente do que Versalhes recebe atualmente num dia de boa visitação. O que importa nele é ficar tão perto da extravagância rococó que, livre da dinastia Bourbon e incorporada pela Unesco ao patrimônio artístico da humanidade, deixou de parecer insolente para se tornar nostálgica.

O hotel fica no cinturão de ruas que costeiam o palácio. Faz parte de sua história. E dormir lá é praticamente dormir em Versalhes, sem os inconvenientes encarados pelos forasteiros que, no século XVIII, com a realeza em casa, conheceram a corte nos bons tempos. Apesar do luxo ostentatório, os padrões da hospedagem no palácio sempre estiveram abaixo da categoria cinco estrelas.

Que o diga o escritor inglês Horace Walpole. Ele andou por ali no apogeu do absolutismo. Com faro aguçado de historiador da arte e o nariz empinado de 4º conde de Oxford, ele fez um retrato impiedoso da vida cotidiana no palácio: “O mau cheiro se agarra nas vestes, perucas e até roupas de baixo. E, o que é pior, mendigos, empregados e visitantes aristocráticos indistintamente usavam as escadas, os corredores e qualquer lugar menos acessível para se aliviar.”

Faltavam banheiros para os 5 mil hóspedes de Versalhes. Fazia parte do serviço de quarto uma equipe encarregada de recolher urinóis nos corredores toda manhã. Na falta desse requinte, o remédio era recorrer ao parque, aos jardins e às aleias do pátio. Até a futura rainha Maria Antonieta, parada diante de um relógio de sol, tomou sem querer um banho de líquido suspeito, despejado do alto de uma janela por mão anônima.

Havia gente demais e privacidade de menos na Versalhes de Luís XVI. Entrava no palácio qualquer um, fora os infectados por varíola. Bastavam na época o chapéu e a espada para credenciar um fidalgo. E, na pior das hipóteses, a portaria alugava chapéus e espadas. Quase nas portas do palácio, o livreiro Lefèvre oferecia folhetos pornográficos em que figurava com destaque a lésbica Toinette (ou seja, Toninha). Ela lembrava, sem tirar nem por, a rainha Maria Antonieta.

Desses excessos da monarquia os hóspedes do Hôtel de l’Orangerie estarão livres. Da revolução para cá, a liberdade e a fraternidade ficaram cada vez mais ao alcance de todos que possam pagar uma diária estimada em, pelo menos, 500 ou 600 euros. Em bom português, cerca de 1 200 ou 1 440 reais. Fora os extras.

Marcos Sá Corrêa

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