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quinta-feira, 8 de maio de 2014

SER OU ESTAR?



A realidade de cada um é construída de acordo com a biologia, experiências pessoais, valores e expectativas pessoais


Eu detesto a onda de pseudociência baseada, com licença poética abusiva, em uma versão fantasiosa da pobre da física quântica, popularizada por livros como O segredo e aquele filme maldito, Quem somos nós. Detesto por uma série de razões, entre elas a mensagem vil (para não dizer totalmente incorreta) de que não é preciso fazer nada para melhorar nossas vidas – quer dizer, nada além de pensar positivamente, pois sua consciência teria a capacidade de mudar a “realidade quântica” do mundo. (Ah, não funcionou e o colar de diamantes não apareceu no seu pescoço, nem o cheque no correio? Você não mentalizou direito. “Venha fazer um curso conosco e aprenda a mudar o mundo com o poder do pensamento!”)

Apenas uma ideia nisso tudo se salva e, ainda assim, apresentada muito tangencialmente por trás da propaganda toda: a noção de que, em vários sentidos, não somos, mas estamos. A diferença entre ser e estar vem aos poucos sendo consolidada pela neurociência, ainda que poucos sejam os estudos que a abordem explicitamente. Estamos, e não somos, no sentido de que a realidade de cada um de nós é diferente, construída de acordo com biologia, experiências pessoais, valores e expectativas.

Não o Real, aquilo que é externo ao corpo; este é alheio à nossa existência e não depende de qualquer atividade mental, embora possa ser mudado à força de mãos, martelos e bombas.

Mas a realidade que cada um usa para navegar o Real, esta sim é uma hipótese de trabalho, construída e reconstruída a cada instante pelo cérebro graças aos sentidos – mas tingida das cores pessoais de cada um.

Assim seu corpo está de certo tamanho e em certo lugar – mas pode encolher ou aumentar instantaneamente, ou até ser transferido para um manequim ou o avatar na tela do computador, graças a truques tão elaborados como realidade virtual ou tão simples como imagens e toques sincronizados. Ou graças ao uso de ferramentas agora já tão habituais que a transformação passa despercebida: assim você incorpora ao seu esquema corporal o lápis, os talheres, a pinça, e até mesmo o carro que dirige.

Assim, também, duas pessoas interpretam de maneiras radicalmente diferentes a mesma frase dita por uma terceira – ou, num bom dia, você ouve favoravelmente um comentário da sua esposa, e num mau dia, acha o mesmo comentário insultante. Viver como um ser que continuamente está tem um lado bom de permitir uma abordagem personalizada do mundo. Por outro lado, às vezes o estar dá errado, pois não mais corresponde bem o suficiente com o Real para servir de guia útil pelo mundo.

Em depressão, julgamos estar pior do que de fato estamos; em estado maníaco, ao contrário, criamos uma realidade brilhantemente cor-de-rosa que não representa os acontecimentos.

Em delírio, como na esquizofrenia ou na mania mais exacerbada, pode-se até estar em um mundo que fala com vozes e imagens que não pertencem ao Real. Mas é justamente o estar que permite o tratamento – e a volta a um estado mais útil, porque melhor representativo do Real.

Essa volatilidade toda, ainda assim, tem uma âncora ao longo do tempo e do espaço: você, essa unidade particular de cérebro e resto do corpo e história de vida. Esse conjunto é o que você é: o seu ser, finalmente – embora seja um conjunto também construído pelo cérebro e portanto meio que paradoxalmente também volátil. Enquanto estiver razoavelmente intacto, e dotado de memória, ele consegue costurar os seus vários “estar” ao longo da vida em um único “ser”. Mas vai-se o cérebro... e fica só  a impressão deixada na realidade dos outros.

Suzana Herculano-Houzel

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