Ela chega à cidade estranha. Hotel, ficha, a chave que continua chamando chave mas é cartão, o quarto, diferente e ainda assim igual a tantos outros quartos de tantos outros hotéis. Não liga a televisão, é amiga do silêncio. Senta-se na cama, confere o relógio. Dispõe ainda de algum tempo. Deita-se. Sente nojo daquela colcha coletiva. Levanta-se, vai à janela.
Prédios altos, prédios baixos, sobrados. Abaixo, nas ruas, fervilha um comércio sem luxo. O peitoril da janela ainda está morno de sol, o olhar dela busca entre janelas e telhados uma razão para olhar, desliza lento, e para em um terraço.
Nem bem terraço. Topo de um prédio de seis andares, maltratado, de muitos pequenos apartamentos. Ela pensa “terraço” porque tem muretas altas e piso em lajes de cimento. Vê um tanque de lavar roupa a um canto, debaixo de um telhadinho, e uma porta, certamente acesso à escada. Tudo cinza.
Súbito, oculto que estava ao olhar pela mureta, emerge daquele cinza um longo pescoço branco, emplumado e ondulante. Um cisne! exclama o pensamento dela. Mas a cabeça que encima aquele pescoço se volta e ela vê, não é cisne, é ganso. Um ganso sozinho no alto de um terraço, no topo de um prédio no meio da cidade.
Como uma mancha de leite, a presença do ganso clareia o terraço. Aquilo que era sujo, escuro e abandonado, que não era senão um inútil espaço urbano, tornou-se o estojo de um segredo. Nenhuma das pessoas lá embaixo sabe que no topo de um prédio um quase cisne move o pescoço com elegância e, em curva, traz a cabeça para afofar as penas com o bico. Ninguém desconfia que no alto, para onde não se volta o olhar, uma bela ave branca abre as asas como um leque.
Ela está distante, o ganso não a ouviria se chamasse, e não sabe como se chamam gansos quando não se tem comida a oferecer, só afeto. Tão belo e só, largado ali ou ali posto como um prisioneiro. Na certa, alguém vem todo dia trazer-lhe ração, encher cuia com água, alguém que ele conhece, morador de um dos tantos apartamentos, dono do ganso e de uma das janelas, alguém que depois nem pensa mais na branca ave solitária.
E eis que uma ponta branca surge num canto, saindo de trás da mureta. Uma ponta, e logo outra a seu lado, mais baixa. Movem-se aquelas manchas claras que ainda não dizem o que são. Param, tornam a se mover, e avançando juntas para o centro do terraço. Revelam-se, orelhas primeiro, corpo depois. É um coelho. O ganso não está só.
Pula o coelho sobre o cimento escuro. O que parecia melancólico tornou-se alegre, dois companheiros desemparelhados transformam o topo do prédio em uma fazendola.
Agora ela sorri, contente por ter sido ludibriada, como se tivesse feito parte de um jogo. Pensa que à noite, debaixo do telhadinho, ganso e coelho se embolam para dormir, partilhando o calor de pelo e pena como se fossem de uma mesma ninhada. Diferentes, ainda assim se querem. De que modo se falam?, pergunta-se ela. No cimento cinzento, o coelho avança com seus discretos saltos em direção ao ganso. O outro certamente ouve o ruído das pequenas unhas sobre o piso. E o cheiro do coelho lhe chega.
Ela ficaria ali, olhando, mas seu tempo acabou. Sai do quarto. Duas personagens brancas a acompanham na lembrança enquanto caminha pelo corredor escuro rumo ao elevador.
MARINA COLASANTI
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Obrigada pela sua opinião e um grande abraço de Jaqueline Ramiro/blog Sou Maluca Sim!