Pouco depois, descobri tratar-se de um integrante do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de teatro carioca que livrou uma geração inteira da divisão entre esquerda e direita que dominava o pensamento vigente.
Nos anos seguintes, eu o veria em Trate-me Leão e Aquela Coisa Toda, imitando magistralmente o crítico teatral Yan Michalski, com sotaque impagável e pochete na mão.
Lembrei de tudo ao assistir a A Farra do Circo, documentário de Roberto Berliner que recria a trajetória do Circo Voador, cujo idealizador foi o meu Cro-magnon do 572.
Ao ver as imagens da Lapa deserta, impressiona o que um grupo de artistas guiados por um visionário é capaz de fazer por uma cidade. Perfeito é um homem à frente de seu tempo.
Expulso da Zona Sul, ele se mandou com a tropa para o Morro do Alemão, isso muito antes de as UPPs falarem em reintegração da cidade partida. Na Lapa falida, Perfeito levantou a lona com seus pares, abriu uma creche, plantou uma horta e as palmeiras que estão lá até hoje. Fez renascer o bairro.
Graças a ele, e à marginália dos anos 80, a Fundição Progresso, cuja fachada já recebia golpes de marreta, foi salva. A noite do Centro renasceu graças a uma mistura de strippers do baixo meretrício com o Brock, Deborah Colker, Luiz Zerbini e Barrão, Manhas e Manias e os poetas malditos, rádio FM e contracultura.
Vestido com uma cartola de strass, com plumas e flores azuis à moda de Chacrinha, Perfeito comanda a massa. Sempre calmo, pede que a plateia ensandecida se pendure na estrutura do Circo com consciência, como se fosse possível encontrar bom-senso na loucura.
A horda segue para a Copa do México, num avião Hércules da FAB, espremida pelos cantos da aeronave despressurizada. Quem viveu a experiência de passar 32 horas a bordo com a carga conta histórias inesquecíveis da empreitada.
E é lá, no México, enfrentando a desistência dos patrocinadores, que a lucidez de Perfeito se torna mais evidente.
Com uma placidez assombrosa, o novo guerreiro afirma que entende a atitude dos empresários. Diz que a arte e o resultado nem sempre andam de mãos dadas; aliás, quase nunca. Perfeito faz o discurso mais claro que já ouvi sobre os interesses que separam a cultura do marketing empresarial. Sem nenhum rancor, avisa que o Circo não vai morrer porque o Circo é voador.
Fala-se muito de verbas no documentário, de aprovações políticas, de números e receitas. A certa altura, Perfeito confessa que espera sair da empreitada gerando muita riqueza, ou muitas dívidas, tanto faz, o importante é bater as asas.
A arte, no Brasil e no mundo, sempre dependeu de mecenas, mas hoje a dependência é institucionalizada. O teatro, a música, a dança, o cinema, todos nós dependemos das leis de incentivo. A inteligência clarividente do Perfeito prova o que um bando de doidos pode fazer por uma cidade e um país.
Eu desejo a ele fortuna, muita fortuna, nesta vida sempre imperfeita.
FERNANDA TORRES
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Obrigada pela sua opinião e um grande abraço de Jaqueline Ramiro/blog Sou Maluca Sim!