2c6833b0-77e9-4a38-a9e6-8875b1bef33d diHITT - Notícias Sou Maluca Sim!: PASSAGEM DO ANO
segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

PASSAGEM DO ANO



O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,


Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,

Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.


O último dia do tempo

Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.


Teu pai morreu, teu avô também.

Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.


O recurso de se embriagar.

O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano.



As coisas estão limpas, ordenadas.

O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.


A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


Carlos Drummond de Andrade

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