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sábado, 21 de junho de 2014

ME DÁ PREGUIÇA




Quem nunca teve preguiça que atire a primeira pedra. De onde vem a preguiça que só de pensar nela ela já aparece? Se uns dizem que são preguiçosos para estudar, ler ou trabalhar, outros dizem que preguiça é “o que dá” diante de certas pessoas ou programas, causas políticas e ecológicas cheias de discursos que se repetem ou que exigem esforço. Em nossos tempos já se falou até de preguiça do sexo. Se a preguiça é difícil de explicar, não é difícil de entender que ela é reação a algo que, na falta de expressão melhor, chateia. Pode ser causa, mas também efeito. Pode ser direito e pode ser desculpa. Em qualquer caso, ela é sempre um mal estar. Tal mal estar não é só ruim, pode também ser proteção contra o excesso de trabalho, contra a super produtividade de cuja exigência ninguém escapa na vida contemporânea. Mal compreendida a preguiça pode ser só uma forma de violência passiva diante das urgências da vida.

A preguiça é um vício

Há preguiça demais e pouca análise dos seus motivos. Até por preguiça. Até parece a grande vitoriosa diante das possibilidades da vida. A preguiça é redundante. Seu nome próprio é a vitória sobre qualquer esforço, até o do pensamento que parece não exigir força alguma. Mas por qual motivo?

Os filósofos antigos se ocupavam da preguiça como um dos sintomas da melancolia que compõe a pré-história da depressão atual. A preguiça era falta de vontade de tudo e qualquer coisa. Na Idade Média, São Tomás de Aquino tratou-a entre os vícios capitais que se opunham às virtudes. Virtude, para o filósofo santo, era tudo aquilo que dizia respeito à realização da natureza de algo. Por exemplo: a virtude da faca é cortar, a virtude do homem é raciocinar, a virtude do cão de guarda é guardar assim como a da estante é suster livros. Neste sentido, mesmo sendo cristão, ele pensava como os antigos gregos. Vício, por outro lado, era tudo o que não alcançava seu próprio objetivo interno, era como perder-se no meio do caminho: uma faca que não corta, um homem que não raciocina, um cão que não guarda, etc. Mas por que algo deixaria de fazer o que deve, ou deixaria de realizar o motivo pelo qual existe?

A definição tomista de preguiça é importante ainda hoje: ela se caracterizava como uma tristeza que impossibilitava a quem dela padecia de agir para fazer o bem. A preguiça era um torpor do espírito que impedia o indivíduo de agir. Não era a maldade, mas a inatividade.

Não é nenhum exagero a sua íntima relação com a cultura brasileira. Quando Mario de Andrade escreveu seu Macunaíma não errou nem por um segundo quanto ao sentido da preguiça que, como sério fator cultural, nos assola desde sempre.

A preguiça é a doença da ação

A preguiça tem alvo. Sua arma é o abandono. Quando temos preguiça tratamos nosso alvo como algo que simplesmente não nos interessa. Abandonamos ou ficamos abandonados a nós mesmos. Pode-se ter preguiça de conversar com amigos, mas também de educar os filhos, de ensinar alunos, de informar um funcionário sobre seus erros ou até acertos. A preguiça não vem do cansaço. É bom esclarecer que cansado é aquele que fez ou tentou fazer, que exauriu forças e não pode prosseguir por esgotamento. Esgotou uma força que havia. Preguiçoso é quem nem tentou fazer, mas está impedido por um outro motivo, o descaso. Em sua base está um desinteresse pelas coisas e pelas pessoas que, sem cuidado, pode se transformar em falta de respeito. O preguiçoso é aquele que esgota uma força que nunca existiu, ele se cansa antes de ter começado como se estivesse doente de uma curiosa incapacidade de agir.

Impotência

Se a violência é destrutiva do poder como um dia comentou a filósofa da política Hannah Arendt, podemos dizer que a preguiça também nega o poder, mas não por contradizê-lo e sim por localizar-se onde ele falta. A preguiça é o nome que se dá a uma forma de impotência, à potência que não se realiza. O preguiçoso não é simplesmente aquele que “não pode”, mas aquele que não tenta, não deseja e, no limite, não se permite sair da inatividade na qual está lançado. No fundo, o impotente é aquele que “poderia, mas não pode”. Porém, é preciso lembrar que “não poder” também está ao alcance de todo aquele que pode. Quem faz algo poderia sempre “não ter feito nada”. O que nos ensina que fazer ou não fazer tem relação direta com a possibilidade de escolha.

A preguiça neste sentido não é o ócio, mas o seu momento negativo, pejorativo. Assim como o negócio é a negação do ócio, mas num sentido positivo, a preguiça é a negação do ócio num sentido pejorativo. Por isso é possível dizer que a preguiça é autoritária, porque ela é fechada, não deixa espaço para as novidades da vida, para outros olhares, para a aceitação de novas potências. Se há segredo em conviver com a preguiça nossa de todo dia, ele está na possibilidade de saber sua diferença com o descanso necessário ou a falta de desejo pela vida e suas possibilidades. É muito bom não fazer nada quando isto é uma escolha, mas não é nada bom ser escravo da própria impotência.

MARCIA TIBURI


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