Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os sucessos que a obrigavam a não preencher a condição da carta póstuma confiada a Anselmo. Em conseqüência desta recusa, a fortuna devia ficar com Anselmo; a moça contentava-se com o que tinha.
Não se deu Anselmo por vencido, e antes de aceitar a recusa foi ver se sondava o espírito de Luís Soares.
Quando o sobrinho do major viu entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma coisa houvesse a respeito do casamento. Anselmo era perspicaz; de modo que, apesar da aparência de vítima com que Soares lhe aparecera, compreendeu ele que Adelaide tinha razão.
Assim pois tudo estava acabado. Anselmo dispôs-se a partir para a Bahia, e assim o declarou à família do major.
Nas vésperas de partir achavam-se todos juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras:
— Major, está ficando melhor e forte; eu creio que uma viagem à Europa lhe fará bem. Esta moça também gostará de ver a Europa, e creio que a srª D. Antônia, apesar da idade, lá quererá ir. Pela minha parte sacrifico a Bahia e vou também. Aprovam o conselho?
— Homem, disse o major, é preciso pensar…
— Qual pensar! Se pensarem não embarcarão. Que diz a menina?
— Eu obedeço ao tio, respondeu Adelaide.
— Além de que, disse Anselmo, agora que D. Adelaide está de posse de uma grande fortuna, há de querer apreciar o que há de bonito nos países estrangeiros a fim de poder melhor avaliar o que há no nosso…
— Sim, disse o major; mas você fala de grande fortuna…
— Trezentos contos.
— São seus.
— Meus! Então sou algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro é desta menina, sua legítima herdeira, e não meu, que aliás tenho bastante.
— Isto é bonito, Anselmo!
— Mas o que não seria se não fosse isto?
A viagem à Europa ficou assentada.
Luís Soares ouviu a conversa toda sem dizer palavra; mas a idéia de que talvez pudesse ir com o tio sorriu-lhe ao espírito. No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria recomendado ao ministro.
Soares procurou ainda ver se alcançava seguir com a família. Era simples cobiça na fortuna do tio, desejo de ver novas terras, ou impulso de vingança contra a prima? Era tudo isso, talvez.
À última hora foi-se a derradeira esperança. A família partiu sem ele.
Abandonado, pobre, tendo por única perspectiva o trabalho diário, sem esperanças no futuro, e além do mais, humilhado e ferido em seu amor-próprio, Soares tomou a triste resolução dos covardes.
Um dia de noite o criado ouviu no quarto dele um tiro; correu, achou um cadáver.
Pires soube na rua da notícia, e correu à casa de Vitória, que encontrou no toucador.
— Sabes de uma coisa? perguntou ele.
— Não. Que é?
— O Soares matou-se.
— Quando?
— Neste momento.
— Coitado! É sério?
— É sério. Vais sair?
— Vou ao Alcazar.
— Canta-se hoje
fg(41,’Barbe-Bleue‘)
Barbe-Bleue, não é?
— É.
— Pois eu também vou.
E entrou a cantarolar a canção de Barbe-Bleue.
Luís Soares não teve outra oração fúnebre dos seus amigos mais íntimos.
Machado de Assis
Publicado Originalmente em Jornal das Famílias (1864)
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