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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

DE QUEM É A VIDA, AFINAL?



Ser “proprietário” da própria existência presume a possibilidade de escolher o que contar sobre si e também a aceitação de que os outros tenham esse mesmo direito

A recente discussão sobre os limites e direitos envolvendo a publicação de biografias opõe argumentos razoáveis das duas partes. Os biografados defendem uma espécie de direito autoral primário sobre sua própria vida, que se traduz tanto pela ingerência e aprovação do processo de redação da biografia, quanto pelo recebimento de valores relativos a seu uso e comercialização. Os escritores postulam que seu trabalho deve se realizar segundo a cláusula maior do uso livre da palavra, que sua tarefa tem custos e que esta não pode depender de manipulações comerciais que ao final sempre podem resultar em veto e favorecimento da “versão oficial” da pessoa a respeito de quem se escreve.

A questão parece variar substancialmente quando se trata de um artista ou um político, que incitam regimes distintos de relação entre vida e “obra”. O quadro muda rapidamente de figura quando se trata do próprio interessado ou de seus herdeiros. E altera-se outra vez quando pensamos na vida íntima de pessoas comuns, expostas em sua privacidade, ou quando consideramos a existência de representantes legais, como no caso de uma criança. Imagine você o caso de um criminoso, que vai amealhar riqueza contando seu crime, ou empreitando que alguém o faça.

Este impasse é formado pelo exagero dos biografados e pela ignorância dos escritores, de uma verdade tácita com a qual ambos operam, sem se dar conta: cada um é dono de sua própria vida... enquanto ela dure; mas cada vida é feita de outras. Ser proprietário ou usuário de uma vida pode implicar também que a vida dos outros faz parte da sua, e que este entremeado de existências pertence a todos nós.

Com essas considerações em mente fui visitar o museu a céu aberto de Inhotim, na cercanias de Belo Horizonte. E lá estava a incrível instalação de Cildo Meireles, com seus quase 100 metros quadrados, composta por cercas, balaustradas, cortinas, barreiras e demais obstáculos que temos de atravessar, pisando sobre vidro quebradiço, para chegar ao núcleo gigante composto por uma massa plástica, vazia e artificial. A cada passo lembrava-me de T. S. Eliot e sua terra devastada. A cultura feita de escombros e ruínas, que nos leva ao centro de uma vida sem centro, à essência de uma vida sem essência. E concluía que se a vida fosse uma obra, deveria ser coletiva. E que se minha vida é composta dos outros que dela fazem parte e nela pisam, os autores das biografias têm razão em exercer sua arte ou sua ciência sobre vidas alheias com a liberdade que lhes é própria, descrevendo com cuidado os labirintos de uma experiência da qual eles não serão exatamente os donos, pois outras biografias virão.

Foi então que encontrei outra instalação, talvez mais majestosa ainda, posto que egressa do Louvre. Tunga dispunha um esqueleto gigante desprovido de crânio, em uma rede que atravessa a sala, assim como o rio Averno, pelo qual as almas eram transpostas pelo barqueiro Aqueronte, em troca de duas moedas. De um lado agrupavam-se os crânios, lembrança de nosso fim comum, de nossa pretensão de superar a morte, essa mestra absoluta. De outro, as cabeças enredadas dos deuses gregos e latinos, absorvidas antropofagicamente de sua passagem pelo museu francês. E concluía então que os biografados têm razão. É preciso pagar para morrer como pessoa, para tornar-se um personagem da própria vida, que teria então deixado uma obra, que justificaria a biografia. Mas não nessa moeda, já que a arte não é indiferente à matéria que ela arruína.

Christian Ingo Lenz Dunke

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