2c6833b0-77e9-4a38-a9e6-8875b1bef33d diHITT - Notícias Sou Maluca Sim!: PERFEITO
terça-feira, 18 de novembro de 2014

PERFEITO


 Quando eu tinha 11 anos, vi Perfeito Fortuna pela primeira vez. Voltando da escola, notei uma figura assustadora sentada no banco do corredor do ônibus. Ele estava descalço, com pés imensos, imundos, e exibia uma cabeleira sebenta até a cintura. Trajava um macacão de jeans surrado, sem camisa nem cueca, supus. Os traços brutos lembravam os de um neandertal.

Pouco depois, descobri tratar-se de um integrante do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de teatro carioca que livrou uma geração inteira da divisão entre esquerda e direita que dominava o pensamento vigente.

Nos anos seguintes, eu o veria em Trate-me Leão e Aquela Coisa Toda, imitando magistralmente o crítico teatral Yan Michalski, com sotaque impagável e pochete na mão.

Lembrei de tudo ao assistir a A Farra do Circo, documentário de Roberto Berliner que recria a trajetória do Circo Voador, cujo idealizador foi o meu Cro-magnon do 572.

Ao ver as imagens da Lapa deserta, impressiona o que um grupo de artistas guiados por um visionário é capaz de fazer por uma cidade. Perfeito é um homem à frente de seu tempo.

Expulso da Zona Sul, ele se mandou com a tropa para o Morro do Alemão, isso muito antes de as UPPs falarem em reintegração da cidade partida. Na Lapa falida, Perfeito levantou a lona com seus pares, abriu uma creche, plantou uma horta e as palmeiras que estão lá até hoje. Fez renascer o bairro.

Graças a ele, e à marginália dos anos 80, a Fundição Progresso, cuja fachada já recebia golpes de marreta, foi salva. A noite do Centro renasceu graças a uma mistura de strippers do baixo meretrício com o Brock, Deborah Colker, Luiz Zerbini e Barrão, Manhas e Manias e os poetas malditos, rádio FM e contracultura.

Vestido com uma cartola de strass, com plumas e flores azuis à moda de Chacrinha, Perfeito comanda a massa. Sempre calmo, pede que a plateia ensandecida se pendure na estrutura do Circo com consciência, como se fosse possível encontrar bom-senso na loucura.

A horda segue para a Copa do México, num avião Hércules da FAB, espremida pelos cantos da aeronave despressurizada. Quem viveu a experiência de passar 32 horas a bordo com a carga conta histórias inesquecíveis da empreitada.

E é lá, no México, enfrentando a desistência dos patrocinadores, que a lucidez de Perfeito se torna mais evidente.

Com uma placidez assombrosa, o novo guerreiro afirma que entende a atitude dos empresários. Diz que a arte e o resultado nem sempre andam de mãos dadas; aliás, quase nunca. Perfeito faz o discurso mais claro que já ouvi sobre os interesses que separam a cultura do marketing empresarial. Sem nenhum rancor, avisa que o Circo não vai morrer porque o Circo é voador.

Fala-se muito de verbas no documentário, de aprovações políticas, de números e receitas. A certa altura, Perfeito confessa que espera sair da empreitada gerando muita riqueza, ou muitas dívidas, tanto faz, o importante é bater as asas.

A arte, no Brasil e no mundo, sempre dependeu de mecenas, mas hoje a dependência é institucionalizada. O teatro, a música, a dança, o cinema, todos nós dependemos das leis de incentivo. A inteligência clarividente do Perfeito prova o que um bando de doidos pode fazer por uma cidade e um país.

Eu desejo a ele fortuna, muita fortuna, nesta vida sempre imperfeita.

FERNANDA TORRES




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